10 de julho de 2023
Embora tenha voltado à baila a questão da prisão especial na corrente reforma ao Código de Processo Penal, os deputados federais decidiram não mexer no instituto. Seguindo a máxima de que nada é tão ruim que não possa piorar, a opção conservadora da Câmara dos Deputados acabou por evitar um desastre maior, já que o texto que veio do Senado Federal, ao contrário do que se andou falando, longe de extinguir a prisão especial, na prática aprofundava seu potencial discriminatório. De fato, ao invés de reservar o privilégio a determinadas castas (como vinha fazendo e continuará a fazer a lei), o texto senatorial delegava à autoridade policial ou judicial o arbítrio para indicar quais os cidadãos que fariam jus no caso concreto ao cárcere diferenciado.
Mas será que em nossa fase de maturidade constitucional e democrática é legítimo que continue a existir, tal como é ainda hoje, o instituto da prisão especial?
A expressão todos são iguais perante a lei (artigo 5º da Constituição do Brasil de 1988), traduz enunciado basilar a qualquer regime que se pretenda democrático, mesmo não sendo autorrealizável no mundo fático. A notória incoincidência entre o dever-ser (ditado pela ordem constitucional) e o ser (encontrado na vida real) indica que o tratamento isonômico dispensado aos cidadãos depende mais da atividade do Estado-executivo e do Estado-judiciário do que da igualdade formal a ser promovida pela função legislativa.
Em boa medida, contudo, a lei também pode ser fonte de desigualdade substancial. Para fins de efetiva igualdade, não basta que se tome a expressão igualdade perante a lei apenas na acepção limitada à equalização no trato concreto dos interesses dos cidadãos sob a regência da lei. Mais que isso: para a igualdade de fato, é essencial que a própria norma legal seja produzida com a ideia de isonomia introjetada em seu material genético e em seus objetivos subjacentes. Ou seja, além da igualdade perante a lei, é importante que se leve em consideração a efetiva igualdade na própria lei.
O que não impede que se tenha em conta o traço da relatividade. Havendo fatores legítimos de discriminação, um ordenamento jurídico de qualidade deve procurar induzir o equilíbrio entre os desiguais, na esteira do célebre enunciado aristotélico, magistralmente difundido entre nós por Rui Barbosa, que propõe tratamento igualitário aos iguais e desigualitário aos desiguais na medida de suas desigualdades.
Lamentavelmente, em especial quanto à legislação penal, o princípio da igualdade segue sendo apenas um mito. Sobejam fatores discriminantes desarrazoados, ilegítimos e imorais, encontradiços desde a definição dos delitos e das penas, passando pela execução das prisões e medidas cautelares, chegando, enfim, ao desenrolar da execução penal e à reintegração do egresso à sociedade.
Não são de difícil detecção desvios propositais – embora pretensamente sutis – em relação ao ideal isonômico. Sobram normas penais desigualitárias, produzidas sob justificativas apenas aparentes, e que constituem precisamente o primeiro mecanismo a selecionar os destinatários do sistema penal. Ao eleger os bens jurídicos a serem tutelados pela norma penal – e ainda a forma e a intensidade dessa tutela –, o legislador, via de regra, submete-se à lógica de dominação em suas projeções social, econômica, política e cultural do país, reproduzindo-a.
Exemplo eloquente de blindagem legal àqueles não mirados originariamente pela instância seletiva da legislação penal brasileira pode ser extraído desse instituto da prisão especial. A expressão chega às bordas do eufemismo, já que, em verdade, não se trata de prisão especial, mas sim de preso especial. É ele o integrante de uma elite em relação à qual o sistema de seleção legal entende que não pode ser submetido a uma cela comum, em mistura aos de classe subalterna, aqueles rejeitos sociais etiquetados como “bandidos” e “marginais”. Não raro, salas bem equipadas são adaptadas para receber o preso ilustre; isso quando ele não segue mantido nas dependências de quartéis ou em recolhimento domiciliar. A prisão especial é praticamente uma assunção oficial de que o sistema penal não foi engenhado para atingir os membros dos diversos segmentos da elite nacional (cultural, econômica e do serviço público).
Ives Gandra Martins é professor Emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Advogado da Advocacia Gandra Martins.
* Esse artigo não reflete necessariamente a posição do escritório Soares de Mello e Valim Advogados Associados
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