O DESRESPEITO À LEI SUPREMA

Recente parecer, de manifesta inconstitucionalidade, expendido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e aprovado, de forma não menos flagrantemente inconstitucional pela Chefia do órgão, pretende outorgar ao Ministério da Fazenda, nas decisões que proferir a favor do contribuinte, o direito de recorrer da própria decisão ao Poder Judiciário.

Aqueles que estudaram Direito Constitucional e Direito Tributário, em qualquer Faculdade das mais de 700 existentes no país, sabem que o Brasil não possui contencioso administrativo. Sabem que a tentativa do governo federal de criá-lo, à luz da emenda constitucional e de notável Comissão de Juristas (Gilberto de Ulhôa Canto, Gustavo Miguez de Mello e Geraldo Ataliba), na década de 70, não vingou. Sabem, por fim, que, com uma ou duas instâncias, o processo administrativo representa uma modesta revisão do lançamento para mantê-lo ou não, nos termos dos artigos 142 e 145 do CTN.

Mesmo sendo os Conselhos de Contribuintes órgãos quase paritários – há privilégios que a Fazenda outorga a seus procuradores que os advogados dos contribuintes não têm -, a decisão final é sempre uma decisão fazendária, com o timbre da repartição governamental que examina as impugnações ou recursos dos contribuintes contra abusos ou ilegalidades eventualmente existentes no lançamento. 

Por esta razão, é que a jurisprudência do STF e do STJ – guardiões da Constituição e da cidadania – não permite que a Fazenda vá a juízo contra suas próprias decisões, como se pode ler nas seguintes ementas:

“(1) Recurso Extraordinário n. 68.253-Paraná
(jurisdição preventa)
1ª. Turma STF
EMENTA: Coisa julgada fiscal e direito subjetivo. A decisão proferida pela autoridade fiscal, embora de instância administrativa, tem, em relação ao Fisco, força vinculatória, equivalente à da coisa julgada, principalmente quando gerou aquela decisão direito subjetivo para o contribuinte. Recurso extraordinário conhecido e provido.
Presidente: Luiz Gallotti – Relator: Raphael de Barros Monteiro” (Aud. de Publ. de 6/5/1970).

(2) Mandado de Segurança n. 8810-DF (2002/0170102-1)
Relator: Min. Humberto Gomes de Barros
Impetrante: CCF Fundo de Pensão
EMENTA: administrativo – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES – DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA.
I- I- A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal.
I- II- O controle do Min. da Fazenda (arts. 19 e 20 do DL. 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da lei.
II- III- As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo “dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, art. 45).
III- IV- Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva do conselho de contribuintes, o Min. da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida” (13/08/2003 data de julgamento);

(3) RECURSO ORDINÁRIO EM MS N° 12.386 – RJ (2000/0092265-0)
RELATOR: MINISTRO FRANCIULLI NETTO
A previsão de recurso hierárquico para o Secretário de Estado da Fazenda quando a decisão do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro for prejudicial ao ente público não fere os princípios constitucionais da isonomia processual, da ampla defesa e do devido processo legal, porque é estabelecida por lei e, ao possibilitar a revisão de decisão desfavorável à Fazenda, consagra a supremacia do interesse público, mantido o contraditório.
Nesse sentido, assevera Hely Lopes Meirelles que os recursos hierárquicos impróprios são perfeitamente admissíveis, desde que estabelecidos em lei ou no regulamento da instituição, uma vez que tramitam sempre no âmbito do Executivo que cria e controla essas atividades. O que não se permite é o recurso de um Poder a outro, porque isto confundiria as funções e comprometeria a independência que a Constituição da República quer preservar”.
Além disso, o contribuinte vencido na esfera administrativa sempre poderá recorrer ao Poder Judiciário para que seja reexaminada a decisão administrativa. Já a Fazenda Pública não poderá se insurgir caso seu recurso hierárquico não prospere, uma vez que não é possível a Administração propor ação contra ato de um de seus órgãos.
Recurso não provido” (19 de fevereiro de 2004 – Data do Julgamento).

Como se percebe, o Poder Judiciário, com a neutralidade de um poder técnico, não agasalha tal tipo de aventura – capaz de ensejar, a meu ver, até responsabilização do Erário, por força do § 6º do art. 37 da lei suprema pelos prejuízos que tal conduta causar aos contribuintes -, razão pela qual o infeliz parecer do digno e competente Procurador Geral da Fazenda Nacional – cujo teor causou-me surpresa, por conhecer a inteligência e cultura jurídica de seu autor – não deverá ter qualquer êxito, quando e se vier a ser utilizado, perante o Judiciário. Até porque não supera a falta de uma das condições da ação, que é o legítimo interesse de agir.

O que me preocupa, todavia, é o fato de que se vai instalando, neste governo, a insegurança jurídica. Pretende-se controlar tudo – magistratura, ministério público, advocacia, jornalismo, produção artística áudio-visual – gerando uma fantástica sensação de incerteza nos cidadãos quanto a estarem seus atos de acordo ou não com a lei, mas apenas com os humores do Governo. Em preciso editorial, a Folha de São Paulo denomina ao processo que se assiste de “Grande Irmão”, ao aludir a obra de Orwell (1984).

Ora, como dizia o eminente Prêmio Nobel de Economia, Ronald Coase, sem instituições jurídicas estáveis e jurisprudência confiável, não há economia de mercado, porque não há segurança e certeza no Direito.

O presente artigo, portanto, pretende apenas alertar o próprio governo de que, ao violar o art. 5º “caput” da Constituição, instituindo, por 10 anos, a insegurança jurídica para o contribuinte, após a decisão administrativa irrecorrível, apenas estará dificultando o crescimento do país, que, apesar dos pífios 4,5% previstos de crescimento para 2004, continua muito atrás da Rússia, China, Índia, Venezuela e outros países, que crescerão entre 8 e 12% este ano. Até mesmo a Argentina prevê um crescimento de 7%, reduzindo a empáfia nacional dos 4,5% a nada, principalmente porque é um crescimento medíocre, sobre um PIB negativo de 2003, primeiro ano deste governo.

Que o Presidente Lula e o competente Ministro Pallocci não embarquem na aventura do infeliz parecer do digno e culto procurador-geral da Fazenda Nacional.

Ives Gandra Martins é professor Emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Advogado da Advocacia Gandra Martins.

* Esse artigo não reflete necessariamente a posição do escritório Soares de Mello e Valim Advogados Associados

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